sexta-feira, 25 de maio de 2018

TEORIA DA REALIDADE C. S. PEIRCE

 A Teoria da Realidade de Charles Sanders Peirce


O que é Realidade? É a pergunta que Peirce procurou responder em seus ensaios Metafísicos, pouco conhecidos do público acadêmico, mas revelados no livro Kósmos Noetós de Ivo Assad Ibri. As referências aqui contidas são da primeira edição.

Leia a Apresentação da obra

A atual condição da academia (cientistas, pesquisadores, professores) os aspectos metafísicos dos conhecimentos acumulados por várias gerações são desconsiderados, na maior parte dos casos com nuances em cada grande área do conhecimento. No âmbito dos estudos biológicos, desde Darwin, os fenômenos observados apresentam-se controlados por uma regência legaliforme[1], baseada em um acaso mais ou menos estocástico[2], como forma de se compreender a dinâmica dos seres biológicos. Nas ciências exatas, as implicações e motivações metafísicas foram abandonadas em favor de uma concepção mecânica do universo, regida por leis deterministas. No âmbito das ciências humanas, a possibilidade de se visualizar ordem e organização sistêmica, como significados de ordem metafísica para a humanidade, foi abandonada, cedendo lugar a uma concepção de um mundo caótico que, no máximo poderia ser organizado parcialmente somente pelo desejo humano (essa foi a maior das heranças do marxismo, infelizmente).

Na história da ciência podemos encontrar que grandes contribuições ao conhecimento humano, não negaram a organização e a ordem legaliforme, com a qual a Realidade nos é apresentada. Há tempos, na origem da revolução científica, ou mesmo na origem da Filosofia (que precede a ciência), as regras de conduta, ou leis, da matéria, da energia, no espaço-tempo, eram concebidas como ação divina, expressão do pensamento de Deus. Uma frase atribuída a Heinrich Hertz (1857-1874, físico alemão, desenvolvedor da Teoria de Maxwell sobre as ondas eletromagnéticas), expressa o sentido da afirmação feita acima:



Não se pode escapar à sensação de que essas fórmulas matemáticas têm uma existência independente e uma inteligência próprias, que são mais sábias do que nós, mais sábias do que seus descobridores ...”[3]

O sujeito integrado, aceita que as leis científicas, fórmulas matemáticas, verdades conhecidas, não são meras criações, ou invenções humanas, mas sim, expressões mais ou menos ruidosas (“defeituosas” se quisermos uma linguagem menos acadêmica), daquilo que está acima da própria matéria e de seus comportamentos, seus hábitos de conduta (como diria C.S.Peirce), imersos e entrelaçados no espaço-tempo. O ser humano, através da Ciência e da Tecnologia, não inventa, apenas descobre aquilo que é Real. Ainda que não possamos compreender determinadas respostas que a Realidade nos fornece, tais como os fatos experimentais da Mecânica Quântica, deveríamos compreender que a Ciência e o conhecimento sobre os fenômenos observáveis, movem-se, ocorrem, dentro de um Universo que transcende o campo visível e sensorial da alteridade, seja material ou imaterial. Essa transcendência, que vai além da alteridade, permitiria uma integração com os conhecimentos científicos que foram obtidos pela humanidade até os dias atuais, permanecendo as formas de conhecimento, tanto a transcendente quanto a científica.

Necessário se faz compreender que cada forma de conhecimento, a seu modo, preenche-nos de saberes especiais, tanto a ciência, a arte e a religião. Trata-se de integrá-las de modo que complementem o caminho de construção do saber. Assim, expandindo a metafísica para além da arte e da religião, a ciência teria por dever, incluir o transcendente locus noético da Realidade[4], em suas coleções de conhecimentos, pensamentos, e leis, sem a necessidade de excluir Deus. Não haveria nenhum engano integrá-Lo junto às descobertas das regularidades científicas, sejam estocásticas ou deterministas.

O ser humano é parte do Cosmos, obedece as mesmas leis que regem o surgimento de estrelas, planetas, etc. Esse Cosmomorfismo, que gera o humano pensamento permite admitir que o Pensamento é Real, e se expressa no Cosmos, e, este último, seria não menos que a expressão do próprio pensamento Divino. Friedrich Wilhelm Joseph Schelling (1775-1854), o filósofo alemão resgatou Deus para o âmbito do cognoscível, afirma: 

“Os homens aprenderam a ver a natureza fora de Deus, e Deus fora da natureza e, na medida em que despojaram aquela necessidade sagrada subordinaram-se à profana.”


REALISMO E NOMINALISMO
Além de profundas polêmicas com os materialistas, é necessário que se entenda que uma polêmica ocorrida no século XI, nas escolas medievais, ainda hoje se expressa no âmbito da ciência, e ainda que de forma modificada impede que uma transcendência objetiva seja incorporada à ciência. A polêmica entre realistas e formalistas, ou os acadêmicos de esquerda (materialistas históricos), pode ser remetida imediatamente ao mesmo tema identificado na “disputa dos universais” desenvolvida pela filosofia escolástica na Idade Média. Pode-se dizer que na verdade vive-se hoje uma espécie de eco intelectual de uma questão que nunca foi totalmente resolvida, desde aquela época.

De acordo com Nicola Abbagnano a disputa dos universais caracterizou-se pela discussão acerca do “status ontológico dos universais (gêneros e espécies)” [5] no início do século XI e prolongou-se “em forma apenas modificada, na filosofia moderna”. (Abbagnano, 1996, pag 1165)

Destacam-se nessa polêmica duas correntes principais que são denominadas como Realismo e Nominalismo. Cada uma a seu modo propunha uma solução para a questão dos universais, apontando uma para a realidade do ser, e a outra para a ocorrência dos universais apenas enquanto nomes:

“Realismo e Nominalismo constituem, por tanto, as duas soluções típicas e historicamente originais do problema. Para o realismo, isto é, para a tradição lógica platônica-aristotélica, o universal é também, além de conceptus mentis, a essência necessária ou a substância das coisas. Para o nominalismo, isto é, para a tradição estóica, o universal é um signo ( um nome - o comentário é meu ) das coisas mesmas.” (Abbagnano, 1996, pag 1165)


A mente não é uma exclusividade humana, há uma mente na natureza, um princípio inteligente que representa “um caráter mental e primordial da origem e estrutura do Universo”. (Ibri, 1994, pag 29) E se assim não fosse, por que haveriam se desenvolvido “mentes” em outras espécies animais? Novamente sugere-se a idéia de isomorfismo para a compreensão dessas semelhanças entre as mentes e o cosmos: um cosmomorfismo.
A defesa lógica do realismo deve partir da idéia evolucionista fundamental de que a existência de mentes pressupõe um padrão básico universal no qual a potencialidade mental constitui sua base. Uma mente não evolue sem que um padrão básico lhe dê sustentação. Ora, a mente é o “substrato”, o sistema de suporte operacional do pensamento, podemos afirmar que ele (o pensamento) só é possível face à realidade do universal de uma “mente”. Pode-se portanto concluir que os universais são reais, já que o próprio pensamento (ação da mente) existe.

Ao considerarmos a questão das leis físicas, que é a expressão científica máxima Daquela transcendente ordenação dos fenômenos, temos que, no Realismo, ela se encontra na Realidade. Para o realista a Lei da Gravitação não é uma construção da mente humana, mas sim uma expressão de uma Lei Real. Nas palavras de Peirce:

“ Eles (os filósofos modernos) dizem-nos que somos nós que criamos as leis da natureza ! O que é real permanece assim se você ou eu ou qualquer coleção de pessoas opinam ou pensam ser ele verdadeiro ou não. Os planetas sempre foram acelerados em direção ao sol por milhões de anos antes que qualquer mente finita estivesse num ser para ter qualquer opinião sobre o assunto. Portanto, a lei da gravitação é uma realidade.” (C.S. Peirce apud Ibri, 1994, pag 12)

Dessa forma deve-se perguntar se uma criação de linguagem, tem o poder de ordenar os fenômenos particulares e inclusive ter a capacidade de prever o comportamento desses fenômenos no futuro? Parece evidente que o nominalismo, sob o disfarce da crítica ao realismo, carece de uma base mais sólida. Portanto realizada a defesa do realismo, colocando-se o nominalismo em sua devida perspectiva, pode-se analisar com mais cuidado o próprio conceito de idealismo objetivo de C.S.Peirce, que se trata de um Realismo, no qual o Pensamento ocorre no âmbito da Realidade.

https://drive.google.com/file/d/0BwRKMh2WAMEUUmhZcW5ZNkwwaWc/view?usp=sharing
Baixe os Slides da Aula sobre Realismo e Nominalismo

A REALIDADE METAFÍSICA


“Quando dizemos que uma coisa “existe” queremos dizer que ela reage sobre outras coisas. Evidencia-se que estamos transferindo para ela nossa experiência direta de reação, ao dizermos que uma coisa age sobre outra. (...) E esta noção de ser tal qual as outras coisas nos moldam, é algo de tal modo proeminente em nossas vidas que concebemos que as outras coisas também existem em virtude de suas reações umas contra as outras.” (apud Ibri, 1992, pag 27)


A noção de existência equivale à categoria Segundidade já discutida em aula, em seu aspecto fenomenológico. Todavia a concepção de realidade para Peirce, não se resume na Segundidade; para ele a Realidade não se situa apenas na singularidade dos objetos existentes.

A mente humana, ao reconhecer que existem objetos que insistem contra a consciência, ou, que reagem entre si, pressupõe um intelecto comparador, que possa mediatizar os fenômenos que são imediatos, sem permanência no tempo, aquele “aqui e agora” característico da Segundidade. Essa mente desenvolve um pensamento relacional semelhante a uma “representação generalizada que reconhece a relação entre suas ocorrências” (Ibri, 1992, pag 29), pois essas ocorrências permanecem no tempo, deixam de ser imediatas; e “a permanência de uma reação no tempo fá-la descaracterizar-se como tal por se tornar uma regularidade no tempo”. (Ibri, 1992, pag 30)

 Esses pensamentos que percebem a regularidade no tempo, que generalizam, tem a característica da Terceiridade. São eles que apontam para a permanência dos existentes, e portanto parecem também apontar logicamente para a ocorrência de uma Terceiridade Metafísica. Essa Terceiridade Metafísica aponta para uma Generalidade Exterior, dessa forma a concepção de Realidade para Peirce contém: uma Alteridade, que se refere à reação, à existência dos individuais; e também uma Generalidade, que se define como uma representação universal dos individuais, como lei.

Deve-se lembrar que na definição das categorias fenomenológicas encontra-se também o sentimento de qualidade que é característica da Primeiridade. No âmbito da Metafísica qual o significado da Primeiridade, ou, o que viria a ser uma Primeiridade Ontológica?

A resposta a essa questão é desenvolvida por Peirce, com um outro questionamento:

“Pode a operação de uma lei criar diversidade onde ela antes não existia ? Obviamente, não; sob dadas circunstâncias, a lei mecânica prescreve um resultado determinado. (...) Vocês podem notar por si mesmos que lei prescreve resultados semelhantes sob circunstâncias semelhantes. Isto é o que a palavra lei implica. Por conseguinte, toda esta exuberante diversidade da natureza não pode ser resultado da lei.” (C.S.Peirce apud Ibri, 1992, pag 37)

O que se configura neste questionamento é o fato observável da ocorrência de variabilidade de formas, cores, espécies; enfim um aspecto de distribuição fortuita dos individuais no universo. Assim é admitido um princípio de aleatoriedade que desenvolve essa distribuição fortuita de qualidades diferentes nos particulares existentes. Esse é o espaço da Primeiridade Ontológica. Trata-se do princípio do Acaso, que promove as inúmeras assimetrias e irregularidades na natureza. Esse Acaso é desprovido “da necessidade lógica que caracteriza a tessitura de uma lei. (...) O que é meramente possível está, de outro lado, associado à idéia de liberdade e espontaneidade.” (Ibri, 1992, pag 40)

Dessa forma definem-se as três categorias, agora em seus aspectos Metafísicos, ou Ontológicos: a Primeiridade - Acaso, Qualidade, Distribuição Fortuita, Variedade; a Segundidade - a Existência, o Fato Bruto, aquilo que Objeta, que Reage; a Terceiridade - a Lei, a Regra, a Permanência no tempo, a Representação, a Significação. Todas essas categorias são aspectos da Realidade, ocorrências reais no universo, no mundo, na natureza. O que cabe ser questionado neste momento é: qual a relação que se estabelece entre o Acaso e a Lei, uma vez que esses dois aspectos pertencem à Generalidade e não à Alteridade do universo ?

Supor o mundo regido somente pela lei seria concebê-lo como um mecanismo perfeito, sem indeterminações, sem possibilidade de erros. Mas nesse mundo perfeito, porque somente nós Homo sapiens sapiens erraríamos ? Parece não haver como negar, supondo-se um universo em evolução, que a questão do erro também aparecerá nesse universo, na forma do acaso. Assim, “Peirce coloca a questão da indeterminação ao nível Ontológico e não meramente sob o ponto de vista epistêmico.” (Ibri, 1992, pag 44) E isto se deve ao fato de que a Ciência Experimental frequentemente descobre que certos fenômenos não se comportam fielmente à lei representada, ocorrendo variações fortuitas nos resultados esperados. Sempre que isso ocorre, a Ciência lança mão de um artifício denominado erro de observação, desenvolvendo até mesmo cálculos estatísticos para prever se o erro está dentro de parâmetros aceitáveis, e desta forma validar a lei. Mas, de acordo com Peirce:



“Tente verificar qualquer lei da natureza, e você descobrirá que quanto mais precisas suas observações, mais certamente elas evidenciarão afastamentos irregulares da lei. Estamos acostumados a atribuí-los, não digo erradamente, a erros de observação; não obstante, não podemos usualmente dar conta de tais erros por qualquer viés antecedentemente provável. Rastreie suficientemente suas causas e será forçado a admitir que eles se devem à determinação arbitrária ou acaso.” (apud Ibri, 1992, pag 46)
 
 Então é isso, Peirce admite um Universo que pensa, que Schelling chama de Absoluto, que os antigos filósofos gregos denominavam de Noetón, um cosmos que tem um componente eidético (o lugar do Eidos, das Idéias). 

Ao se estabelecer a hipótese da matriz eidética, pressupõe-se que essa mente essencial do universo não se configuraria somente sobre um determinado sistema biológico mas sim sobre todo o universo material, embora ela mesma desprovida de materialidade. As seguintes quatro passagens são ilustrativas dessa concepção:

1 - “O pensamento não está necessariamente conectado a um cérebro. Ele aparece no trabalho das abelhas, dos cristais e através de todo o mundo físico. Não se pode negar que ele esteja realmente lá, que as cores, formas, etc, dos objetos realmente lá esteja.” (C.S.Peirce apud Ibri, 1994, pag 65)

2 - “A natureza somente parece inteligível na medida em que parece racional, ou seja, na medida em que seus processos são considerados similares a processos de pensamento.” (C.S.Peirce apud Ibri, 1992, pag 57)

3 - “A terceira categoria dos elementos dos fenômenos consiste no que chamamos de leis quando os contemplamos exteriormente apenas, mas que quando olhamos ambos os lados do anteparo, chamamo-los pensamentos.” (C.S.Peirce apud Ibri, 1992, pag 57)

4 - “Estamos acostumados a falar de um mundo externo e de um mundo interno de pensamento. Mas eles são apenas adjacências sem nenhuma linha fronteiriça real entre eles.” (C.S.Peirce apud Ibri, 1992, pag 58)


 E os Signos da Semiótica Peirceana? São eles que nos conectam ao Kosmós Noetós, a Realidade, fazendo Semiose. As classes de signos nos informam apenas que os signos também são entes reais que também se organizam segundo as categorias da Realidade (Primeirdade, Segundidade e Terceiridade). Mas o mais importante é entender que a Realidade complexa em seu campo da Existência é controlada pela Lei e indeterminada pelo Acaso. As coisas do mundo tendem para a organização para a ordem, muito embora seja esse um caminho evolucionário que ainda contém os ecos do passado caótico.

https://drive.google.com/open?id=0BwRKMh2WAMEUUjdPeDg2Z0N5OTQ
Baixe os slides apresentados em aula
Era isso o que eu tinha a dizer sobre a Teoria da Realidade de Peirce. Se quiser saber mais, leia meu livro:

FIM

 
[1] Legaliforme: na forma de uma ou várias leis, regras de conduta da matéria, da energia, do espaço-tempo.
[2]  Dentro da teoria das probabilidades, um processo estocástico é uma família de variáveis aleatórias representando a evolução de um sistema de valores com o tempo. É a contraparte probabilística de um processo determinístico.(wiki)
[3]  “One cannot escape the feeling that these mathematical formulas have an independent existence and an intelligence of their own, that they are wiser than we are, wiser even than their discoverers ...” http://www-history.mcs.st-andrews.ac.uk/Biographies/Hertz_Heinrich.html (em 05/03/20)
[4] Para Aristóteles, o movimento imutável do universo era um Nous cósmico. Aqui é usado no mesmo sentido aristotélico, o lugar do pensamento cósmico.
 [5]  Universais são Gerais e não Particulares; implicam na realidade de um nome, ou conceito, e não somente na presentidade desse nome; não somente em um caso particular de um conceito. O conceito Homo sapiens é um universal, pertencente ao campo da generalidade; o homem "Charles Sanders Peirce" foi uma presentidade desse conceito, um particular.

Nenhum comentário:

Postar um comentário